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Aumenta a judicialização nas EFPCs
Da nomeação de um dirigente à transferência de gerenciamento de um plano, as decisões nas EFPCs estão sendo cada vez questionadas

Edição 365

Rodrigues,FlavioMartins(Bocater) 14nov 03(BrunaNishihata)O aumento dos questionamentos jurídicos às decisões tomadas por instâncias da previdência complementar não deve ter passado despercebido para atentos observadores desse sistema. Não que esses questionamentos sejam uma novidade no segmento, na verdade sempre existiram, mas até alguns anos atrás debatiam temas relacionados aos benefícios dos planos. Nos últimos anos, porém, novos atores passaram a atuar nesse ecossistema e os questionamentos passaram a ser os mais diversos, desde nomeações e afastamento de dirigentes ao fechamento de planos, desde mudanças nas regras de benefícios às transferências de gerenciamento de planos.
O ingresso de novos atores e de novos temas não é, necessariamente, algo ruim, pode ser até benéfico, mas é preciso ter sempre o cuidado de evitar tornar o ambiente excessivamente bélico a ponto de prejudicar o funcionamento das entidades. A atuação de associações de participantes e de aposentados, de sindicatos de trabalhadores, de tribunais de contas e até de políticos profissionais ganhou relevância nos últimos anos dentro da previdência complementar. Para Flávio Martins Rodrigues, sócio do escritório Bocater Camargo Costa e Silva Rodrigues Advogados, a situação contém um elemento preocupante. “Passou-se de um nível de discussões individuais para um nível de discussões coletivas, sobretudo relacionados à governança das entidades”, diz ele em entrevista à Investidor Institucional. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Investidor Institucional - Como você está vendo esse aumento da judicialização de temas relacionados à previdência fechada?
Flávio Martins Rodrigues - Nós sempre tivemos uma judicialização grande em torno de assuntos relacionados às entidades fechadas de previdência. Mas antes eram participantes e assistidos que buscavam uma revisão dos seus benefícios, pautando temas que foram sendo enfrentados pelo Poder Judiciário e que foram sendo sedimentados em decisões sobretudo do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mas o que a gente vê agora é algo novo. São associações representativas de aposentados e sindicatos em litígio com as entidades e com os patrocinadores. Então, passou-se de um nível de discussões individuais para um nível de discussões coletivas, sobretudo relacionados à governança das entidades. E isso é muito preocupante.

Porque acha isso preocupante?
Veja, a governança da entidade é um fim para se chegar a um objetivo. E qual é esse objetivo? Ele está relacionado ao artigo 202 da Constituição, que diz as reservas dos planos devem garantir o benefício contratado. Muitas vezes, as discussões levadas ao judiciário sobre a governança, me parece que têm menos o objetivo de buscar preservar as reservas e maximizar os resultados dos planos e muito mais o objetivo de ter influência sobre a entidade. Me parece mais uma briga pelo controle das entidades.

O regulador tem agido de forma a minimizar esses conflitos ou a postura do regulador tem maximizado os conflitos?
O órgão regular, o CNPC, é formado por um grupo de pessoas muito qualificadas e que vem implementando algumas alterações que já eram esperadas e desejadas, como, por exemplo, a adesão automática. E, de certa forma, o regulador faz a sua tarefa que é mais, digamos, generalista do que específica. Já o órgão fiscalizador e supervisor, que é a Previc, dirigida pelo Ricardo Pena que é um especialista no assunto, uma pessoa que trata dessas matérias há décadas e tem uma experiência que poucas pessoas no Brasil possuem, tem tentado mas não tem conseguido equilibrar essas relações.

Qual é o ponto de dificuldade para alcançar esse equilíbrio?
As partes do contrato previdenciário, que são de um lado os participantes e assistidos, por suas associações e sindicatos, e de outro lado os patrocinadores e as entidades, estão orbitando numa esfera de conflitos que a Previc não tem conseguido resolver. E nem poderia resolver, pois são soluções privadas de uma maneira geral. Eu acho que essas partes do contrato previdenciário, que são partes privadas, têm que buscar um entendimento maior.

De que tipo? Através da câmara de mediação, conciliação e arbitragem que já existe no setor? Essa câmara deveria ter um papel mais ativo?
Eu acho essa lembrança muito oportuna. A lei de criação da Previc prevê a mediação, a conciliação e a arbitragem como uma tarefa da Previc, que dispõe desses meios alternativos para pôr fim aos litígios. Quando as denúncias são apresentadas à Previc, sempre que ela detecte que esse conflito está indo para um patamar de desagregação da previdência complementar, ela poderia indicar a atuação da CMCA. A gente tem que ter claro que a conciliação, a mediação e a arbitragem são facultativas, mas eu entendo que a autarquia deveria sugerir essa solução e buscar avaliar quem realmente está em busca um entendimento, de uma solução consensual, que é a base do contrato previdenciário.

Porque vc cita que esse consenso é a base do contrato previdenciário?
O contrato previdenciário parte do consenso e fica o tempo todo dentro do consenso. Quando o contrato previdenciário perde o consenso, o natural será o rompimento desse contrato, que no limite é a retirada de patrocínio, uma solução muito drástica, muito ruim, sobretudo para os participantes.

A maioria dos sindicatos, até alguns anos atrás, passavam ao largo das disputas dentro dos fundos de pensão. Em geral, eles tinham uma ou algumas pessoas que participavam dos conselhos mas sem uma atuação realmente interligada ao sindicato. Isso mudou e eles passaram a atuar mais em temas como a transferência de planos, a extinção de planos, etc. Esse é o novo normal?
Realmente, no passado os sindicatos davam menos importância para a previdência complementar e isso tem se transformado. Agora, o que eu acho importante destacar é que a visão sindical seja uma visão voltada para proteger o participante e as suas reservas, e não uma posição de ocupação de um espaço político, num sentido mais restrito.

Tem acontecido isso?
As entidades de previdência complementar são espaços políticos na expressão mais ampla da palavra. Então, nos casos de transferência de planos, muitas vezes isso envolve a mudança de uma entidade que tem uma maior inserção dos participantes nos órgãos colegiados para outra entidade com menor inserção, e os sindicatos podem se opor a essa transferência de gerenciamento para não perder espaço. Mas a gente tem que ter claro que a transferência de gerenciamento é um direito do patrocinador.

Por que você acha que é um direito do patrocinador?
É o patrocinador que facultativamente cria o plano, contribui para o plano e acompanha o plano. É o plano oferecido por aquele patrocinador que vai alocar recursos para pagar benefícios previdenciários. Então, a meu ver, a visão do sindicato deveria ser uma visão mais técnica, voltada para a governança da gestão dos investimentos, da gestão do passivo do plano e não uma discussão sobre quem vai comandar a entidade. E porque eu digo isso? Porque não há nenhum elemento comprobatório de que as entidades com maior inserção de participantes nos Conselhos Deliberativos e Fiscal trazem melhores resultados do que as entidades com menor inserção de participantes nesses colegiados. Há outros mecanismos de participação cujos espaços poderiam ser ocupados por pessoas vinculadas aos sindicatos, com uma visão mais técnica, como comitês de acompanhamento de plano.

A judicialização dos temas previdenciários tem, além de tudo, um custo alto em termos de contratação de escritórios de advocacia. Esses custos vão para os planos?
Sim. Os processos de judicialização, digamos assim, são coletivos. De um lado há uma parte que representa uma coletividade, ou entidade de previdência, ou sindicato, ou associação, e de outro lado está o patrocinador, em geral. E quando a entidade está envolvida, e normalmente estará, isso gera um custo para o PGA da entidade. Mas eu não acho que essa oneração seja capaz de alterar o equilíbrio do plano, que em geral têm reservas com valores absolutos altos, porém geram liminares que as vezes impedem contribuições extraordinárias, impedem processos de financiamento de déficit, impedem transferências de patrocínio.

Na sua opinião, essas liminares podem ser mais graves do que os custos dos serviços de advogados?
Sim, pois tumultuam a vida normal do plano. Existe um caso em que um juiz entendeu pela não transferência do plano de uma entidade para outra, depois ele verificou que a transferência das reservas já tinha ocorrido e que trazer as reservas de volta para a entidade de origem poderia determinar um custo, um risco para os investimentos, e então voltou atrás. Veja, isso pode levar, por exemplo, ao atraso do pagamento das complementações, pode levar a uma modificação do gestor dos recursos de uma hora para outra, e sabe-se que a gestão administrativa da entidade precisa de uma perenidade, de um cuidado para não ter nenhum atropelo que possa causar dano ao plano.

O judiciário está preparado para lidar com esses temas de previdência complementar, cujos aspectos técnicos são, muitas vezes, difíceis de entender para quem não é do setor?
De fato, não há varas especializadas em previdência complementar, mas nesse mundo complexo que a gente vive há muitas, digamos assim, sub-áreas técnicas do direito que são remetidas ao judiciário. Por exemplo na área de óleo e gás, na área de tecnologia, na área financeira, de mercados capitais, etc e seria difícil ter tantas varas especializadas. Uma das soluções para reduzir os conflitos nessas áreas é a arbitragem. O contrato previdenciário poderia estabelecer uma cláusula arbitral para aquelas discussões como a retirada de patrocínio, a transferência de planos, etc

Isso já no regulamento do plano?
Poderia ser no regulamento do plano, como se fez nas regras do novo mercado na Bolsa de Valores, onde as empresas para ascenderem a determinados patamares têm que prever nos seus estatutos cláusulas arbitrais que evitem exatamente essa questão do juiz não especializado. Então, acho que a arbitragem é uma boa solução, assim como a mediação, que é até prévia à arbitragem, e pode ser estimulada pela Previc.

Na sua opinião, a mediação poderia reduzir um pouco as pressões sobre a Previc, vinda das partes do sistema, que a gente sabe que não são poucas?
A Previc deve atuar sempre, e muitas vezes essa atuação desagrada a uma das partes, seja sindical ou do patrocinador, mas tem que se entender que a autarquia é subordinada às regras legais. O caso da transferência, por exemplo, é típico, muitas vezes percebemos uma pressão sobre a Previc contra a transferência, quando ela não pode negar a transferência. Então, tem que se ter também uma maturidade de expectativa com relação ao órgão de supervisão.

Como esses mecanismos de solução de conflitos funcionam em outros países, em países onde os fundos de pensão são mais fortes, como nos Estados Unidos e Holanda, por exemplo?
Eu tenho bastante contato com advogados estrangeiros, através de uma associação da qual eu faço parte, e a gente vê também problemas de litígio. Então, na Inglaterra a quantidade de litígios envolvendo fundos de pensão é muito alta também. Em países como a Holanda, que possuem uma visão mais sedimentada, há uma busca de evitar o conflito, sobretudo por parte dos sindicatos, que negociam previamente as cláusulas que regem os fundos de pensão nos dissídios coletivos, junto com patrocinadores e empregadores, evitando a judicialização. Na Holanda, quando se percebe que um tema vai ser judicializado, ele vai para uma mesa de discussão que reúne trabalhadores e empregadores na busca de uma composição. Eu acho que essa é a melhor solução.

A Anapar poderia ter um papel mais ativo na solução desses conflitos?
Eu acho que sim. A Anapar é um ambiente de pessoas muito técnicas, muito qualificadas, que poderiam, digamos assim, aconselhar algumas representações de participantes, assistidos e sindicatos num caminho mais técnico e menos convulsionado de solução. Ela poderia, muitas vezes, orientar para soluções tecnicamente mais eficientes. Por exemplo, nem sempre o melhor é ter um representante sindical no conselho deliberativo, muitas vezes pode ser mais eficiente ter três pessoas técnicas em um comitê de acompanhamento do plano, como eu disse anteriormente.

A gente nota, hoje, que há uma tendência dos planos a se concentrarem nas entidades maiores, em busca de escala, gerando mais pedidos de transferência. Isso pode elevar os conflitos?
Hoje as obrigações regulatórias são muito intensas para as entidades, porque elas estão num ambiente de muitos riscos, risco de passivo atuarial, de investimentos, de gestão, Então, a regulação vai impondo processos cada vez mais sofisticados e, portanto, mais caros, levando à diminuição do número de entidades e ao aumento do número de planos em outras entidades. Então, esse processo de transferência de planos para congregar vários planos numa mesma entidade, embora seja um processo benéfico para o participante, que terá um custo administrativo menor, pode realmente acirrar os conflitos.